01/03/2010

Little Green Bag


São dez da manhã. A luz entra suave pela janela da cozinha, que reluz azulejo branco. No meio, uma mesa retangular de dois metros de comprimento coberta por uma toalha branca de padrão xadrez grande e azul com cerejas entres seus quadrados coberta por um plástico transparente. Me explicando que era a toalha favorita da filha, ela segura um copo d’água com as duas mãos brancas de esmalte pastel nas unhas de dedos trêmulos. As lágrimas escorrem da pele de porcelana enquanto a boca vermelha milimetricamente desenhada enviesa soluços. Os loiros cabelos lisos cortados com as pontas para dentro na altura do colo escondem o sofrimento prata. No vestido de alças largas e discreto decote circular se repete a cor azul da fita que firma os cabelos. O gorjear dos pássaros da manhã primaveril contrasta com o turvor da situação. As crianças às gargalhadas correndo com bicicletas na calçada ignoram tudo. Eu sou um pistoleiro. Hoje eu passaria por corretor de imóveis: terno azul-marinho liso e barato, camisa branca vagabunda, uma gravata amarelada com pequenos quadrados azuis e uma maleta. Apenas os grandes óculos escuros me denunciam. Me sinto o próprio Mr. Pink. Nunca tiro os óculos, eles me protegem das pessoas normais. Ela me contratou para aplacar sua vingança. Me conta em descompostura intensa como um carro bêbado esmagou sua filinha de sete anos de idade e seu marido e grande amor desde a infância contra uma parede chapiscada enquanto iam à escola. Ela ouviu o grito com o coração antes de o estrondo acertar seus ouvidos e correu aqueles dois quarteirões surda e dormente. A pequena de cachinhos dourados e roupa pesada tossia ainda viva, o pai protegeu-a com o corpo em concha, em seu último e assustado ato segurou o pára-choque do carro com a espinha e o muro com os braços cruzados, protegeu a filha com a vida. Mas na tentativa desesperada de fuga o motorista daquele sedan preto e de luxo errou a marcha e acelerou novamente contra o muro, a pequena não tinha mais a vida do pai e não resistiu ao segundo impacto. Ela me conta da sensação devastadora de impotência que a derrubou a poucos metros do sangue derramado daquelas suas vidas. Os óculos me protegem da sinceridade e da dor daquela bela mulher. O motorista fugiu a pé, bêbado e desafiador. Era menor de idade e um estereotipo clássico do filinho-de-papai: mimado, rico, pai juiz, degenerado que carrega impunidade no olhar de desdém. Ela conta que tentou consertar a filha com as próprias mãos enquanto chegava a ambulância. O seu desespero quase me atravessa os óculos. A imprensa alardeou o acidente como uma fatalidade em defesa do jovem estudante de medicina de futuro brilhante, que se apresentou apenas três dias depois para a justiça. Ela me fala que saiu da casa do pai, um policial violento e hipócrita que espancava a mãe quando bebia, porque ele a estuprou. A mãe suicidou-se pouco depois da morte do irmão mais novo por overdose. Me surpreende quando ela diz que ainda assim cuidou do pai em estágio terminal de câncer em com compaixão estúpida até sua morte e foi a única em seu enterro. O garoto foi condenado, pelo “acidente”, a prestar serviço comunitário. Me emputeço com isso. Esse tipo de playboy, essa suja corja coorporativa continua cagando na nossa cabeça. Adivinha? Ele não compareceu um dia sequer à escola que tinha que limpar, não ia se rebaixar, trabalhar como aqueles pobres miseráveis. Descumpriu a pena e não foi punido, era menor. Um garoto de dezesseis anos não pode decidir seu destino, mas pode decidir o destino de um país? Francamente. Às vezes esse trabalho me cansa. Consternada me diz que abdicou da carreira para dedicar-se à família. Concretizou o lar que sonhou menina e se orgulha disso. Tem vivido da caridade dos vizinhos esperando por justiça. Se alimenta do ódio e a vingança é o que a faz levantar todo dia. Nos últimos meses se tornou um estorvo. Ela me conta que vendeu o carro para pagar o advogado. Outra corja, mas claro que eu tenho o meu bem pago para qualquer coisa. A esta altura ela não se importa mais com dinheiro, vendeu os últimos móveis e eletrodomésticos para me fazer uma oferta. Na cozinha só resta a mesa. Depois de fitar aquele farrapo soluçante de aparência impecável eu faria de graça. Ela empurra sobre a mesa uma pequena mochila verde recheada com todo o dinheiro que tinha, era da pequena. Ainda mantinha os quartos do mesmo jeito que deixaram, vivia num pesadelo tangível. Ela me implora que eu faça algo, só assim pode descansar. Me compadeço dela. Vê pessoa tão boa que nada fez contra ninguém, apenas se resignar de todo o sofrer que a vida lhe trouxe e apesar de tudo se agarra em qualquer fiapo de humanidade para sobreviver, me faz imaginar se existe realmente um plano superior e se eu estou nele. A sua dignidade e fibra moral são sua prisão e a impedem de desistir da sua sobrevida. Ponho a mão sobre a mochilinha e encaro em silêncio por alguns minutos enquanto pondero todas as circunstâncias e seus desdobramentos. Ela não terá paz se eu não o fizer e nesse momento eu sou a única pessoa com que ela pode contar e o mais próximo que ela tem de um amigo. Pergunto se ela vai ficar bem, ela resvala um sorriso sarcástico com o canto da boca e diz “Eventualmente”. Eu guardo a mochila na maleta, meu peito dispara, me lembro da minha primeira ceifa. Esta talvez seja a primeira vez que sinto que faço algo bom, algo nobre. Talvez eu me aposente, talvez eu case e tenha uma filha, já tenho a mochila. Me levanto, pego fôlego, ando em direção a ela para a saída da cozinha. Pouso a mão direita sobre seu ombro direito, ela apenas choraminga fixando o olhar no nada. Sob o portal da sala estanco por uma visão metafísica, a janela luminosa jorra luz cozinha adentro e emoldura a figura azul-dourada da mulher sentada, o sol suave reflete na mesa, o verde da rua e os pássaros em revoada completam o quadro de renoir. Num movimento instantâneo e coordenado saco de dentro do coldre do flanco esquerdo minha glock 17 com silenciador e disparo um tiro preciso na nuca. O sangue espirra e espalha plácido sobre o plástico que protege a toalha que não mancha. Era a preferida da filha. Levo a mão ao cenho franzido e aquela dor espalhada em névoa rosa condensa uma lágrima no meu rosto. Rio à cena, um riso sincero. Sinto que fiz algo bom, algo nobre. Ela precisava descansar. À porta da rua vejo a vida em panorâmica. Com um movimento lento e doloroso tiro os óculos guardo no paletó e desapareço.
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