30/08/2010

Dia de nada

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Tiago chegou em casa depois de um dia extenuante de trabalho, fazia tanto calor em Teresina que seu tento ainda crepitava do pesado sol de meio-dia. Resolveu enfim se permitir a um luxo melindroso: despiu-se! Ficou nu. Nada de roupa. Nuzão em alegria. Vestia apenas brisa e entregou-se ao frio do piso.

Ficou ali, parado, olhando para as telhas que insistiam em formar desenho algum, era o homem vitruviano da preguiça e do friozinho do chão. – Ai ai... Que maravilha, liberdade! Sussurrou com riso franco na boca. Era como se ele descalçasse sapatos três números menores após um dia de caminhada... Um incomensurável alívio.

Quando já se perdia em idéias frias de colinas nevadas e fogs de gelo seco ignorando o bombardeio solar lá fora, ouviu a voz de Dona Maria o chamar no portão da mureta – Saco! Resmungou. Dona Maria era uma senhorinha muito amiga de sua mãe, tinha idade já avançada, um jeitinho de beata de quermesse do interior, não tenho certeza, mas às vezes parecia de “Belzonte” e a esta altura de suas férias vitalícias, tratava apenas de informações alheias. A única qualidade de Dona Maria era sua filha, menina linda de rosto e jeitos finos, a quem Tiago desejara desde que se mudou para a vizinhança. A partir daí travou uma batalha diária para que ela o notasse, quando a encontrava na rua pescoçeava como periquito para ver se ela o havia visto, e sempre fingia que ela fingia que não o notara. Pobre Tiago.

– Tiago!
– Oi DonMaria! Já vai!

Pôs-se de pé e esgueirou-se até a janela que dava no portãozinho com cuidado para não expor suas liberdades aos olhos armados e maldosos. Levantou a cabeça sobre o parapeito como um fantoche, girou para um lado, para o outro e... – Ué! Cadê a DonMaria?

– TIAGO!! Virou-se do susto tropeçando no sofá e almofadas, nem teve tempo de proteger o... os... sua masculinidade. A velha estava lá, pasma, vermelha com as mãos sobre a boca escancarada. Tiago finalmente reagiu e enfiou uma almofada no colo e exclamou – DonMariaoquequeasenhoratáfazenoaqui?

– Meu filho pelamordeDeus!
– Ouh DonMaria! A gente num entra sem bater não...
– Num se preocupe, eu num vi nada! Nada, nadinha...

Tiago percebeu um ranço, um sarcasmo na afirmação da velha.

– Como assim não viu nada?
– Não vi nada. Eu olhei, mas não enxerguei nada.

Ah meu filho! Tiago então se enfureceu com aquela ofensa a seu prestigioso ego, tudo bem que seu ego não fosse enorme, algo que se exclamasse – Meu Deus que ego! – ou que o denunciasse numa andança ordinária. Mas nada? Nada! Nada era demais.

– Como assim nada?
– Nada! Num vi nada.

Com a cabeça latejando de raiva disse – Ah é? Pois eu vou mostrar o nada.

Levantou-se num pulo, sacou a almofada, apoiou os punhos nas ancas e fez pose de vitória olhando levemente para o alto de sua direita.

Cri, cri, cri... nenhum som, nenhuma reação, de fato acho que até os carros pararam neste átimo insano.

Dona Maria olhava direto à virilha, apertando a vista como míope que tentasse ler sem suas dioptrias, e declarava um pequeno dissimulado e sínico sorriso no canto direito da boca – Nada, não vejo nada.

O espanto de Tiago só exponenciava sua ira. – Ah é? Pois olhe!

Então se sucedeu o mais horrendo e perplexivo balé jamais imaginado. Tiago pegou distância e engatou passos de break ao som imaginário de “ice, ice, baby...”, foi de lado ao outro da sala mostrando seu Hammer, “u can´t touch this, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh...”, voltou com um deslizante Moonwalker, floreou com um pouco de Footlose, encarnou John Travolta nos Embalos de Sábado à Noite, “ah, ah, ah, ah... staying alive, staying alive...” e encerrou magistralmente com o “power slide” de Flashdance, “She's a maniac, maniac on the floor...”. Ofegante, esbaforido, suado e vitorioso, de joelhos aos pés de Dona Maria, Tiago desafiou – Então, e agora o quê que a senhora acha?

A velha com olhos marejados do espetáculo (desconfio que era pura vergonha alheia), e com a cabeça em negativa olhou-o ternamente e disse – Eu não acho NADA Tiago, não vi NADA! – e gargalhou já de saída.

Caiu a ficha. Seu enrugado orgulho o havia levado a um erro que pagaria com o couro. – Logo DonMaria, a fofoqueira da rua, pra quê meu Deus. Tiago nunca havia se sentido tão diminuído, pequeno, encolhido como num dia de frio, murcho, retraído, mínimo, ridiculamente ínfimo, mas isso era só um detalhe. Um pequeno e irrisório detalhe... perto do que o aguardava.

Nada. Foi como se sentiu no dia seguinte quando voltava de outro dia sofrível de trabalho. Todos na rua o olharam com riso escancarado ecoando a mesma palavra em várias notas e tons, que mais pareciam seu réquiem: Nada. N-a-d-a. Na-da. N-a-na-d-a-da. NADA! Seu nada ecoou em olhares insidiosos e sorrisos de cínica e cruel câmera lenta. Agora ele fingia que os outros não fingiam que não falavam dele.

Os dias de escárnio se repetiam sem dó. Havia se encodeado num novo e sorumbático mundo, evitava sair de casa e se escondia nos afazeres cotidianos. Já tinha planejado até mudar de aparência, ou de caminhos até a chegada de sua casa, ou os dois. Tinha pensado em barba cheia e fechada, quem sabe um terno. Não, não, muito distinto... um mendigo ou um hippie. Hippie não! Nem por isso valeria a pena descer tão baixo.

Chegou cabisbaixo com o montante de sol e troças nas costas, a pele frita e o juízo fervendo. Lançou a mochila e as roupas sobre a cama e foi banhar-se. Enfiou a cabeça na ducha do chuveiro como se pudesse escoar seu grande nada. Nada. Nada foi o que se tornou sua homenzice. Clap, clap, clap. Palmas à porta. – Mãe! Gritou – Tem gente na porta. Clap, clap, clap. – Mãe! Mãe? Pôs a cabeça no corredor e viu nada. Ninguém na casa. Apressou-se em por ao menos a toalha para evitar outros achaques e foi ao portão.

Esgueirou-se ao portal lateral da entrada de onde se via o portãozinho da mureta. Era a filha de Dona Maria. Agora ele queria poder fingir que não a havia visto. Só faltava agora a filha de Dona Maria o agravar também.

Não sabia onde se enfiar, queria uma fresta do submundo pra pular dentro e sepultar aquele embaraço. Rebuscou uma fagulha de coragem, acho que era desespero, encheu o peito, desceu de toalha com afronta nas sobrancelhas grossas e cerradas e disse em grave e ríspido tom – O quê que tu quer?

Com as mãos pra trás, o sorriso lascivo e a cara mais desavergonhada do mundo, os olhos lampejantes e mirando enviesado para o chão e para Tiago, ela emendou – Eu...? Eu quero NADA!
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28/08/2010

TRIMERA N° 4!

Já está nas bancas a Trimera n° 4!!


Chegamos à última edição da revista.

Agradecemos a todos que ajudaram, que atrapalharam, os que sequer souberam de sua passagem por aqui, os entusiastas, os sonhadores, os críticos, os devedores, os gênios incógnitos, os medíocres notórios, os artistas, os não-artistas e, por fim, os escritores, estes em menor número.

Sirvam-se das postas desta literatura rasgada onde derramamos nosso sangue e com borrifos e filetes tingimos essas últimas páginas.


Bon apetit!



Leia a Trimera on-line.