30/06/2010

Dia de empregada

.
Desde bem antes da morte da esposa ela já o servia, limpava suas botas quando vinha do estábulo, servia bebida e café enquanto ele sentava com os pés apoiados na pequena mesa de madeira escura.

A submissão no olhar admirado lampejava a todos, e apesar do zelo, apreço e adoração era a empregada e ele a tratava assim... Como a empregada.

Era figura importante na cidade, bem relacionado e querido entre os amigos. Gabava-se em tom rude da lida e agruras que enfrentou para ser quem era. Vivia a respirar a admiração que todos o ofertavam. E ela, sem nada ter, ofertar ou esperar, complacentemente o amava.

Esperava-o toda noite com a mesa posta, a toalha no ombro, os ombros encolhidos e o lava-pés ao lado de sua poltrona de couro, seguia a mesma rotina todo dia com o fervor de beata em procissão.

Naquele dia limpou-lhe as botas de lamas e esterco, lavou-lhe os pés com morno banho de ervas, enquanto ele degustava etílico aperitivo para temperar o repasto. Então em rompante, ele bateu o fundo do copo fortemente contra a mesinha, fitou-a o fundo dos olhos com fúria e fogo e a tomou nos braços com grosseiro beijo.

Naquela noite foi dele, apesar do êxtase não ousava palavra, ele não gostava, não ousava carinho, ele não a amava. Era a empregada.

Todo dia ela o amava, todo dia ele que a não amava, a tinha. Por anos serviu-lhe à mesa e à cama, era odalisca, era gueixa, era ama e aia, era mulher, amante, era o colo, era o calo, era o gozo, era o escape e ainda era a empregada.

Achava suficiente a ter, não a merecia ou desmerecia, não a respeitava mais por tudo, tão pouco a respeitava menos, aquele cotidiano o bastava. Então, sob um meio-dia, hora onde não se nasce ou morre, feriu-lhe o imo, tão lancinante angústia, que sentiu o gosto do palpitar surdo do peito a travar-lhe a garganta. Atinou à casa num galope resfolegante e cego cruzou o acre de terra na amplitude de um grito. Abriu a porta e encontrou-a ao chão em corpo lasso e rubras lágrimas a verterem os olhos.

Desesperou-se como da outra vez, mas desta não permitiria a morte, berrou agonia em raiva aguda tão forte que convocou todos em quilômetros, que sem saber o porquê vieram em seu apelo. Todos que lhe deviam respeito ou dinheiro o acudiram a afastar o sinistro.

Cuidou-a como o mais caro presente, gastou fortuna e grisou os cabelos em busca duma cura, dedicou cada segundo de cada mês daquela estação a cuidá-la de tudo. Lembrou: os anos de esmero e desvelo, dos olhos a ofertar carinho sem riso em resposta, dos anos dados porque sim, as horas ansiadas por qualquer coisa, a lágrima contida e o sorriso sentido.

Perdeu noites vigiando espasmos a anunciar melhora, perdeu a calma a esperar o alívio, vendeu terras e empenhou o nome, perdeu as forças. Mas num dia de tristeza em que a desesperança escorria em solitária gota, quando o último filete do ocaso a tocou no rosto, inexplicável como a vida, ela abriu os olhos.

Ele a viu como novo parto e chorou como vivesse tudo de uma só vez, mas não sorriu, abraçou-a tão forte que se ouviu nas duas caixas apenas um retumbo.

Amparou-lhe no ombro e em recuperado semblante austero desfilou as ruas da cidadezinha como herói, onde todos o reconheciam com respeitoso sorriso e leve meneio. Desta vez não permitiu a morte. Conduziu-a até a casa e abriu-lhe a porta.

Ela parou ao primeiro passo e olhou minuciosamente toda a casa que agora sentia sua, marejou os olhos à visão de cada cômodo e cada badulaque e trouxe a memória de tantas datas. Com amor em sorriso aberto e alegria em choro procurou pelo homem que lhe ofertou nova vida em presente.

Achou-o já sentado na poltrona de couro, com os pés apoiados na mesinha escura, com as mãos firmes cravadas nos descansos e o semblante duro e ríspido, que era só seu, estampado em plenitude. O ranger pesado dos anos na face anunciou a primeira fala, fitou-a sem sorriso e disse: – Me limpe as botas!

Continuava empregada.

16/06/2010

A devorante


Disse-lhe que não se preocupasse, que seria o melhor homem que tivera, o mais bravo dentre todos os guerreiros que já a amaram. Ela o esnobava e ria-se a seus esforços, como se ninguém superasse o contendido passado. Até o dia que lhe veio à porta com sangue manchando a face de lobo. Ela se entregou ali mesmo no batente do último degrau branco enquanto se embriagava com o cheiro pútrido e o sanguino gosto dos corações devorados de seus antigos amantes.

08/06/2010

" Sou um homem bom,
apenas mudei o sabor
para que o mundo não me devorasse. "


João Azedo
.
.