29/10/2010

O Magarefe

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Dizem que a agonia de um bode ante a morte é quase humana, é quase como abater alguém.

Éééeeeeeaaaaaaaaaaaaiiihhhhrrrrrgggg!!! O grito apavora, aterroriza, oprime. Quando me vê com o cutelo e o avental já manchado de sangue cada fibra daquele pacote indefeso de carne estremece. Seus músculos são cordas vibrando um réquiem da matéria inconsolável. Ele se imprime contra a parede, fere a pele, agita as pernas em corrida deslizante, alardeia súplica em brado, a dignidade escorre e espuma pelos cantos da boca. A carne trêmula chora. Tenta em vão capturar em resfolego alguns segundos a mais. O grito apavora aterroriza oprime... Me estremece! Minha pele eriça, os poros captam impulsos estáticos e o fedor do medo expelido em aflição.

O olhar lastima em contorcida angústia e choro e grito, o gume da lâmina. O desespero verte cristalino, sal e água pela face. Argrrraaahhhh! Grasna agonia guturalizada pelas cordas molhadas, soluça lágrimas de dor e certeza.

A morte são apenas os efêmeros instantes que antecedem a ida. O fio firme e gélido corta o pulsar. Dilacera. O esguicho ecoa em agudo e longo lamento, tão alto, tão vívido que me acerta o âmago... e cessa. Por um lampejo aquela vida inteira me passou pela vista e aquela alma sente a minha.

Minha vontade estanca, meus músculos desenrijam. Meu coração de ânsia comprimida faz correr todo sangue em único ruidoso espasmo que aquece toda carne suada e exausta. Quem nunca fitou a alma no instante em que foge não percebe o poder do borrifo vermelho no meu rosto e quão triste ele é. Toda uma vida se justifica em quase um segundo.

Esbaforido inalo em frenesi o troféu rubro que me escorre do rosto com o suor. E agora: meu vazio, meu êxtase, minha dor e meu regozijo. Amaldiçôo tal sina, trago a morte no cenho, alimento minha vida de cada ceifa.

Dizem que a agonia de um bode ante a morte é quase humana, é quase como abater alguém... Dizem errado!