27/12/2010

19/11/2010

VEÍCULO QSP!!!



veículo q.s.p.

é uma fusão co-administração da poesia do grupo ACADEMIA ONÍRICA com a música da banda QUARTERÃO – indicado para o tratamento de qualquer efeito placebo, diz NÃO a toda prescrição manipuladora! – inibidor potente da flacidez do não-dito, do não-feito! – estudos adequados atestam sua eficácia pró-permanência de toda sorte de inspiração, sobretudo as inflamáveis – tais pesquisas também confirmam que a administração de VEÍCULO Q.S.P. concomitantemente com festa, diversão e fúria resultou em um considerável acúmulo de bem estar no paciente, ou melhor, no sujeito – embora estudos de interações com outras drogas não tenham sido realizados, tais combinações podem ser positivas: combatendo ânsia, angústia e medo – existem relatos de que POESIA TARJA PRETA é certeiramente indicada para exterminar, de modo sumário, algemas e o mais que com elas se pareçam – QUARTERÃO é adequado para catalisar o grito primata do homem solar, intermunicipal e provinciano, que se rebela contra as agruras da decrépita cidade frankstein – VEÍCULO Q.S.P. é bem tolerado – as reações adversas mais comumente observadas são reverberações no tempo – isto é, reações adversas, não – o espanto é poético, ou seja: foi, é e será uma QUANTIDADE SUFICIENTE PARA uma reação adverso +

29/10/2010

O Magarefe

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Dizem que a agonia de um bode ante a morte é quase humana, é quase como abater alguém.

Éééeeeeeaaaaaaaaaaaaiiihhhhrrrrrgggg!!! O grito apavora, aterroriza, oprime. Quando me vê com o cutelo e o avental já manchado de sangue cada fibra daquele pacote indefeso de carne estremece. Seus músculos são cordas vibrando um réquiem da matéria inconsolável. Ele se imprime contra a parede, fere a pele, agita as pernas em corrida deslizante, alardeia súplica em brado, a dignidade escorre e espuma pelos cantos da boca. A carne trêmula chora. Tenta em vão capturar em resfolego alguns segundos a mais. O grito apavora aterroriza oprime... Me estremece! Minha pele eriça, os poros captam impulsos estáticos e o fedor do medo expelido em aflição.

O olhar lastima em contorcida angústia e choro e grito, o gume da lâmina. O desespero verte cristalino, sal e água pela face. Argrrraaahhhh! Grasna agonia guturalizada pelas cordas molhadas, soluça lágrimas de dor e certeza.

A morte são apenas os efêmeros instantes que antecedem a ida. O fio firme e gélido corta o pulsar. Dilacera. O esguicho ecoa em agudo e longo lamento, tão alto, tão vívido que me acerta o âmago... e cessa. Por um lampejo aquela vida inteira me passou pela vista e aquela alma sente a minha.

Minha vontade estanca, meus músculos desenrijam. Meu coração de ânsia comprimida faz correr todo sangue em único ruidoso espasmo que aquece toda carne suada e exausta. Quem nunca fitou a alma no instante em que foge não percebe o poder do borrifo vermelho no meu rosto e quão triste ele é. Toda uma vida se justifica em quase um segundo.

Esbaforido inalo em frenesi o troféu rubro que me escorre do rosto com o suor. E agora: meu vazio, meu êxtase, minha dor e meu regozijo. Amaldiçôo tal sina, trago a morte no cenho, alimento minha vida de cada ceifa.

Dizem que a agonia de um bode ante a morte é quase humana, é quase como abater alguém... Dizem errado!

14/09/2010

De nada!

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Tiago então descobriu que tinha de fato não um, mas dois Egos. O Ego e o SUPEREGO. Agora quando responde os achincalhes que NADA lhe afetam, desfia com ares de canastrão mexicano e desfaçatez no canto da boca – Meus EGOS!
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30/08/2010

Dia de nada

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Tiago chegou em casa depois de um dia extenuante de trabalho, fazia tanto calor em Teresina que seu tento ainda crepitava do pesado sol de meio-dia. Resolveu enfim se permitir a um luxo melindroso: despiu-se! Ficou nu. Nada de roupa. Nuzão em alegria. Vestia apenas brisa e entregou-se ao frio do piso.

Ficou ali, parado, olhando para as telhas que insistiam em formar desenho algum, era o homem vitruviano da preguiça e do friozinho do chão. – Ai ai... Que maravilha, liberdade! Sussurrou com riso franco na boca. Era como se ele descalçasse sapatos três números menores após um dia de caminhada... Um incomensurável alívio.

Quando já se perdia em idéias frias de colinas nevadas e fogs de gelo seco ignorando o bombardeio solar lá fora, ouviu a voz de Dona Maria o chamar no portão da mureta – Saco! Resmungou. Dona Maria era uma senhorinha muito amiga de sua mãe, tinha idade já avançada, um jeitinho de beata de quermesse do interior, não tenho certeza, mas às vezes parecia de “Belzonte” e a esta altura de suas férias vitalícias, tratava apenas de informações alheias. A única qualidade de Dona Maria era sua filha, menina linda de rosto e jeitos finos, a quem Tiago desejara desde que se mudou para a vizinhança. A partir daí travou uma batalha diária para que ela o notasse, quando a encontrava na rua pescoçeava como periquito para ver se ela o havia visto, e sempre fingia que ela fingia que não o notara. Pobre Tiago.

– Tiago!
– Oi DonMaria! Já vai!

Pôs-se de pé e esgueirou-se até a janela que dava no portãozinho com cuidado para não expor suas liberdades aos olhos armados e maldosos. Levantou a cabeça sobre o parapeito como um fantoche, girou para um lado, para o outro e... – Ué! Cadê a DonMaria?

– TIAGO!! Virou-se do susto tropeçando no sofá e almofadas, nem teve tempo de proteger o... os... sua masculinidade. A velha estava lá, pasma, vermelha com as mãos sobre a boca escancarada. Tiago finalmente reagiu e enfiou uma almofada no colo e exclamou – DonMariaoquequeasenhoratáfazenoaqui?

– Meu filho pelamordeDeus!
– Ouh DonMaria! A gente num entra sem bater não...
– Num se preocupe, eu num vi nada! Nada, nadinha...

Tiago percebeu um ranço, um sarcasmo na afirmação da velha.

– Como assim não viu nada?
– Não vi nada. Eu olhei, mas não enxerguei nada.

Ah meu filho! Tiago então se enfureceu com aquela ofensa a seu prestigioso ego, tudo bem que seu ego não fosse enorme, algo que se exclamasse – Meu Deus que ego! – ou que o denunciasse numa andança ordinária. Mas nada? Nada! Nada era demais.

– Como assim nada?
– Nada! Num vi nada.

Com a cabeça latejando de raiva disse – Ah é? Pois eu vou mostrar o nada.

Levantou-se num pulo, sacou a almofada, apoiou os punhos nas ancas e fez pose de vitória olhando levemente para o alto de sua direita.

Cri, cri, cri... nenhum som, nenhuma reação, de fato acho que até os carros pararam neste átimo insano.

Dona Maria olhava direto à virilha, apertando a vista como míope que tentasse ler sem suas dioptrias, e declarava um pequeno dissimulado e sínico sorriso no canto direito da boca – Nada, não vejo nada.

O espanto de Tiago só exponenciava sua ira. – Ah é? Pois olhe!

Então se sucedeu o mais horrendo e perplexivo balé jamais imaginado. Tiago pegou distância e engatou passos de break ao som imaginário de “ice, ice, baby...”, foi de lado ao outro da sala mostrando seu Hammer, “u can´t touch this, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh...”, voltou com um deslizante Moonwalker, floreou com um pouco de Footlose, encarnou John Travolta nos Embalos de Sábado à Noite, “ah, ah, ah, ah... staying alive, staying alive...” e encerrou magistralmente com o “power slide” de Flashdance, “She's a maniac, maniac on the floor...”. Ofegante, esbaforido, suado e vitorioso, de joelhos aos pés de Dona Maria, Tiago desafiou – Então, e agora o quê que a senhora acha?

A velha com olhos marejados do espetáculo (desconfio que era pura vergonha alheia), e com a cabeça em negativa olhou-o ternamente e disse – Eu não acho NADA Tiago, não vi NADA! – e gargalhou já de saída.

Caiu a ficha. Seu enrugado orgulho o havia levado a um erro que pagaria com o couro. – Logo DonMaria, a fofoqueira da rua, pra quê meu Deus. Tiago nunca havia se sentido tão diminuído, pequeno, encolhido como num dia de frio, murcho, retraído, mínimo, ridiculamente ínfimo, mas isso era só um detalhe. Um pequeno e irrisório detalhe... perto do que o aguardava.

Nada. Foi como se sentiu no dia seguinte quando voltava de outro dia sofrível de trabalho. Todos na rua o olharam com riso escancarado ecoando a mesma palavra em várias notas e tons, que mais pareciam seu réquiem: Nada. N-a-d-a. Na-da. N-a-na-d-a-da. NADA! Seu nada ecoou em olhares insidiosos e sorrisos de cínica e cruel câmera lenta. Agora ele fingia que os outros não fingiam que não falavam dele.

Os dias de escárnio se repetiam sem dó. Havia se encodeado num novo e sorumbático mundo, evitava sair de casa e se escondia nos afazeres cotidianos. Já tinha planejado até mudar de aparência, ou de caminhos até a chegada de sua casa, ou os dois. Tinha pensado em barba cheia e fechada, quem sabe um terno. Não, não, muito distinto... um mendigo ou um hippie. Hippie não! Nem por isso valeria a pena descer tão baixo.

Chegou cabisbaixo com o montante de sol e troças nas costas, a pele frita e o juízo fervendo. Lançou a mochila e as roupas sobre a cama e foi banhar-se. Enfiou a cabeça na ducha do chuveiro como se pudesse escoar seu grande nada. Nada. Nada foi o que se tornou sua homenzice. Clap, clap, clap. Palmas à porta. – Mãe! Gritou – Tem gente na porta. Clap, clap, clap. – Mãe! Mãe? Pôs a cabeça no corredor e viu nada. Ninguém na casa. Apressou-se em por ao menos a toalha para evitar outros achaques e foi ao portão.

Esgueirou-se ao portal lateral da entrada de onde se via o portãozinho da mureta. Era a filha de Dona Maria. Agora ele queria poder fingir que não a havia visto. Só faltava agora a filha de Dona Maria o agravar também.

Não sabia onde se enfiar, queria uma fresta do submundo pra pular dentro e sepultar aquele embaraço. Rebuscou uma fagulha de coragem, acho que era desespero, encheu o peito, desceu de toalha com afronta nas sobrancelhas grossas e cerradas e disse em grave e ríspido tom – O quê que tu quer?

Com as mãos pra trás, o sorriso lascivo e a cara mais desavergonhada do mundo, os olhos lampejantes e mirando enviesado para o chão e para Tiago, ela emendou – Eu...? Eu quero NADA!
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28/08/2010

TRIMERA N° 4!

Já está nas bancas a Trimera n° 4!!


Chegamos à última edição da revista.

Agradecemos a todos que ajudaram, que atrapalharam, os que sequer souberam de sua passagem por aqui, os entusiastas, os sonhadores, os críticos, os devedores, os gênios incógnitos, os medíocres notórios, os artistas, os não-artistas e, por fim, os escritores, estes em menor número.

Sirvam-se das postas desta literatura rasgada onde derramamos nosso sangue e com borrifos e filetes tingimos essas últimas páginas.


Bon apetit!



Leia a Trimera on-line.

19/07/2010

Como um pato

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Às vezes me sinto

como quem quase anda,

como quem quase voa,

como quem quase...

Nada.

30/06/2010

Dia de empregada

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Desde bem antes da morte da esposa ela já o servia, limpava suas botas quando vinha do estábulo, servia bebida e café enquanto ele sentava com os pés apoiados na pequena mesa de madeira escura.

A submissão no olhar admirado lampejava a todos, e apesar do zelo, apreço e adoração era a empregada e ele a tratava assim... Como a empregada.

Era figura importante na cidade, bem relacionado e querido entre os amigos. Gabava-se em tom rude da lida e agruras que enfrentou para ser quem era. Vivia a respirar a admiração que todos o ofertavam. E ela, sem nada ter, ofertar ou esperar, complacentemente o amava.

Esperava-o toda noite com a mesa posta, a toalha no ombro, os ombros encolhidos e o lava-pés ao lado de sua poltrona de couro, seguia a mesma rotina todo dia com o fervor de beata em procissão.

Naquele dia limpou-lhe as botas de lamas e esterco, lavou-lhe os pés com morno banho de ervas, enquanto ele degustava etílico aperitivo para temperar o repasto. Então em rompante, ele bateu o fundo do copo fortemente contra a mesinha, fitou-a o fundo dos olhos com fúria e fogo e a tomou nos braços com grosseiro beijo.

Naquela noite foi dele, apesar do êxtase não ousava palavra, ele não gostava, não ousava carinho, ele não a amava. Era a empregada.

Todo dia ela o amava, todo dia ele que a não amava, a tinha. Por anos serviu-lhe à mesa e à cama, era odalisca, era gueixa, era ama e aia, era mulher, amante, era o colo, era o calo, era o gozo, era o escape e ainda era a empregada.

Achava suficiente a ter, não a merecia ou desmerecia, não a respeitava mais por tudo, tão pouco a respeitava menos, aquele cotidiano o bastava. Então, sob um meio-dia, hora onde não se nasce ou morre, feriu-lhe o imo, tão lancinante angústia, que sentiu o gosto do palpitar surdo do peito a travar-lhe a garganta. Atinou à casa num galope resfolegante e cego cruzou o acre de terra na amplitude de um grito. Abriu a porta e encontrou-a ao chão em corpo lasso e rubras lágrimas a verterem os olhos.

Desesperou-se como da outra vez, mas desta não permitiria a morte, berrou agonia em raiva aguda tão forte que convocou todos em quilômetros, que sem saber o porquê vieram em seu apelo. Todos que lhe deviam respeito ou dinheiro o acudiram a afastar o sinistro.

Cuidou-a como o mais caro presente, gastou fortuna e grisou os cabelos em busca duma cura, dedicou cada segundo de cada mês daquela estação a cuidá-la de tudo. Lembrou: os anos de esmero e desvelo, dos olhos a ofertar carinho sem riso em resposta, dos anos dados porque sim, as horas ansiadas por qualquer coisa, a lágrima contida e o sorriso sentido.

Perdeu noites vigiando espasmos a anunciar melhora, perdeu a calma a esperar o alívio, vendeu terras e empenhou o nome, perdeu as forças. Mas num dia de tristeza em que a desesperança escorria em solitária gota, quando o último filete do ocaso a tocou no rosto, inexplicável como a vida, ela abriu os olhos.

Ele a viu como novo parto e chorou como vivesse tudo de uma só vez, mas não sorriu, abraçou-a tão forte que se ouviu nas duas caixas apenas um retumbo.

Amparou-lhe no ombro e em recuperado semblante austero desfilou as ruas da cidadezinha como herói, onde todos o reconheciam com respeitoso sorriso e leve meneio. Desta vez não permitiu a morte. Conduziu-a até a casa e abriu-lhe a porta.

Ela parou ao primeiro passo e olhou minuciosamente toda a casa que agora sentia sua, marejou os olhos à visão de cada cômodo e cada badulaque e trouxe a memória de tantas datas. Com amor em sorriso aberto e alegria em choro procurou pelo homem que lhe ofertou nova vida em presente.

Achou-o já sentado na poltrona de couro, com os pés apoiados na mesinha escura, com as mãos firmes cravadas nos descansos e o semblante duro e ríspido, que era só seu, estampado em plenitude. O ranger pesado dos anos na face anunciou a primeira fala, fitou-a sem sorriso e disse: – Me limpe as botas!

Continuava empregada.

16/06/2010

A devorante


Disse-lhe que não se preocupasse, que seria o melhor homem que tivera, o mais bravo dentre todos os guerreiros que já a amaram. Ela o esnobava e ria-se a seus esforços, como se ninguém superasse o contendido passado. Até o dia que lhe veio à porta com sangue manchando a face de lobo. Ela se entregou ali mesmo no batente do último degrau branco enquanto se embriagava com o cheiro pútrido e o sanguino gosto dos corações devorados de seus antigos amantes.

08/06/2010

" Sou um homem bom,
apenas mudei o sabor
para que o mundo não me devorasse. "


João Azedo
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22/05/2010

Poesia fácil

à Zorbba


Poesia não tem tempo
e não precisa de fórmula
como estar atento
às muitas e oníricas formas

Escrevo com desdém
a um agravo atemporal
desejar ritmo e rima
é desejo comum e banal

Aparentemente posso transmutar
palavras em imagens
mas quem escreve sem rimar
pode se deleitar em vantagens

Poeta não é bem visto
bem desejado ou puro
poesia é só um vício
de quem se apaixona no escuro.



(...) Poema que Laís Romero me fez em resposta à minha falta de tato para com a poesia.

12/05/2010

Amor aos pedaços

Amor entenda...
............te quero pra sempre!
Amor pára...
............não corre, teu lugar é aqui!
Amor não chora...
............quero te ver feliz.
Amor não grita...
............vai ficar tudo bem.
Amor não se debate...

Amor...
Você fica fazendo doce...
Você fica fazendo doce!

Eu te faço doce,

Amor...

Aos pedaços!

06/04/2010

Gênesis

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Existia só. Nunca amou ou teve amores. Guardou em si a solidão e crueza do mundo. Cortou os pulsos na banheira dum rio, sem platéia. E do pletórico gotear emergiram amantes puro-sangue a celebrar em lasciva procissão as reminiscências do criador.

A barata e a beata

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Pelo amor de Deus,
Mata ela,
Mata!

11ª Feira de HQ do Piauí


Já estão abertas as inscrições para a 11ª feira de hq do Piauí.

Mais informações com o Núcleo de Quadrinhos:

http://nucleodequadrinhospi.blogspot.com


Participem!

01/03/2010

Little Green Bag


São dez da manhã. A luz entra suave pela janela da cozinha, que reluz azulejo branco. No meio, uma mesa retangular de dois metros de comprimento coberta por uma toalha branca de padrão xadrez grande e azul com cerejas entres seus quadrados coberta por um plástico transparente. Me explicando que era a toalha favorita da filha, ela segura um copo d’água com as duas mãos brancas de esmalte pastel nas unhas de dedos trêmulos. As lágrimas escorrem da pele de porcelana enquanto a boca vermelha milimetricamente desenhada enviesa soluços. Os loiros cabelos lisos cortados com as pontas para dentro na altura do colo escondem o sofrimento prata. No vestido de alças largas e discreto decote circular se repete a cor azul da fita que firma os cabelos. O gorjear dos pássaros da manhã primaveril contrasta com o turvor da situação. As crianças às gargalhadas correndo com bicicletas na calçada ignoram tudo. Eu sou um pistoleiro. Hoje eu passaria por corretor de imóveis: terno azul-marinho liso e barato, camisa branca vagabunda, uma gravata amarelada com pequenos quadrados azuis e uma maleta. Apenas os grandes óculos escuros me denunciam. Me sinto o próprio Mr. Pink. Nunca tiro os óculos, eles me protegem das pessoas normais. Ela me contratou para aplacar sua vingança. Me conta em descompostura intensa como um carro bêbado esmagou sua filinha de sete anos de idade e seu marido e grande amor desde a infância contra uma parede chapiscada enquanto iam à escola. Ela ouviu o grito com o coração antes de o estrondo acertar seus ouvidos e correu aqueles dois quarteirões surda e dormente. A pequena de cachinhos dourados e roupa pesada tossia ainda viva, o pai protegeu-a com o corpo em concha, em seu último e assustado ato segurou o pára-choque do carro com a espinha e o muro com os braços cruzados, protegeu a filha com a vida. Mas na tentativa desesperada de fuga o motorista daquele sedan preto e de luxo errou a marcha e acelerou novamente contra o muro, a pequena não tinha mais a vida do pai e não resistiu ao segundo impacto. Ela me conta da sensação devastadora de impotência que a derrubou a poucos metros do sangue derramado daquelas suas vidas. Os óculos me protegem da sinceridade e da dor daquela bela mulher. O motorista fugiu a pé, bêbado e desafiador. Era menor de idade e um estereotipo clássico do filinho-de-papai: mimado, rico, pai juiz, degenerado que carrega impunidade no olhar de desdém. Ela conta que tentou consertar a filha com as próprias mãos enquanto chegava a ambulância. O seu desespero quase me atravessa os óculos. A imprensa alardeou o acidente como uma fatalidade em defesa do jovem estudante de medicina de futuro brilhante, que se apresentou apenas três dias depois para a justiça. Ela me fala que saiu da casa do pai, um policial violento e hipócrita que espancava a mãe quando bebia, porque ele a estuprou. A mãe suicidou-se pouco depois da morte do irmão mais novo por overdose. Me surpreende quando ela diz que ainda assim cuidou do pai em estágio terminal de câncer em com compaixão estúpida até sua morte e foi a única em seu enterro. O garoto foi condenado, pelo “acidente”, a prestar serviço comunitário. Me emputeço com isso. Esse tipo de playboy, essa suja corja coorporativa continua cagando na nossa cabeça. Adivinha? Ele não compareceu um dia sequer à escola que tinha que limpar, não ia se rebaixar, trabalhar como aqueles pobres miseráveis. Descumpriu a pena e não foi punido, era menor. Um garoto de dezesseis anos não pode decidir seu destino, mas pode decidir o destino de um país? Francamente. Às vezes esse trabalho me cansa. Consternada me diz que abdicou da carreira para dedicar-se à família. Concretizou o lar que sonhou menina e se orgulha disso. Tem vivido da caridade dos vizinhos esperando por justiça. Se alimenta do ódio e a vingança é o que a faz levantar todo dia. Nos últimos meses se tornou um estorvo. Ela me conta que vendeu o carro para pagar o advogado. Outra corja, mas claro que eu tenho o meu bem pago para qualquer coisa. A esta altura ela não se importa mais com dinheiro, vendeu os últimos móveis e eletrodomésticos para me fazer uma oferta. Na cozinha só resta a mesa. Depois de fitar aquele farrapo soluçante de aparência impecável eu faria de graça. Ela empurra sobre a mesa uma pequena mochila verde recheada com todo o dinheiro que tinha, era da pequena. Ainda mantinha os quartos do mesmo jeito que deixaram, vivia num pesadelo tangível. Ela me implora que eu faça algo, só assim pode descansar. Me compadeço dela. Vê pessoa tão boa que nada fez contra ninguém, apenas se resignar de todo o sofrer que a vida lhe trouxe e apesar de tudo se agarra em qualquer fiapo de humanidade para sobreviver, me faz imaginar se existe realmente um plano superior e se eu estou nele. A sua dignidade e fibra moral são sua prisão e a impedem de desistir da sua sobrevida. Ponho a mão sobre a mochilinha e encaro em silêncio por alguns minutos enquanto pondero todas as circunstâncias e seus desdobramentos. Ela não terá paz se eu não o fizer e nesse momento eu sou a única pessoa com que ela pode contar e o mais próximo que ela tem de um amigo. Pergunto se ela vai ficar bem, ela resvala um sorriso sarcástico com o canto da boca e diz “Eventualmente”. Eu guardo a mochila na maleta, meu peito dispara, me lembro da minha primeira ceifa. Esta talvez seja a primeira vez que sinto que faço algo bom, algo nobre. Talvez eu me aposente, talvez eu case e tenha uma filha, já tenho a mochila. Me levanto, pego fôlego, ando em direção a ela para a saída da cozinha. Pouso a mão direita sobre seu ombro direito, ela apenas choraminga fixando o olhar no nada. Sob o portal da sala estanco por uma visão metafísica, a janela luminosa jorra luz cozinha adentro e emoldura a figura azul-dourada da mulher sentada, o sol suave reflete na mesa, o verde da rua e os pássaros em revoada completam o quadro de renoir. Num movimento instantâneo e coordenado saco de dentro do coldre do flanco esquerdo minha glock 17 com silenciador e disparo um tiro preciso na nuca. O sangue espirra e espalha plácido sobre o plástico que protege a toalha que não mancha. Era a preferida da filha. Levo a mão ao cenho franzido e aquela dor espalhada em névoa rosa condensa uma lágrima no meu rosto. Rio à cena, um riso sincero. Sinto que fiz algo bom, algo nobre. Ela precisava descansar. À porta da rua vejo a vida em panorâmica. Com um movimento lento e doloroso tiro os óculos guardo no paletó e desapareço.
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