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Desde bem antes da morte da esposa ela já o servia, limpava suas botas quando vinha do estábulo, servia bebida e café enquanto ele sentava com os pés apoiados na pequena mesa de madeira escura.
A submissão no olhar admirado lampejava a todos, e apesar do zelo, apreço e adoração era a empregada e ele a tratava assim... Como a empregada.
Era figura importante na cidade, bem relacionado e querido entre os amigos. Gabava-se em tom rude da lida e agruras que enfrentou para ser quem era. Vivia a respirar a admiração que todos o ofertavam. E ela, sem nada ter, ofertar ou esperar, complacentemente o amava.
Esperava-o toda noite com a mesa posta, a toalha no ombro, os ombros encolhidos e o lava-pés ao lado de sua poltrona de couro, seguia a mesma rotina todo dia com o fervor de beata em procissão.
Naquele dia limpou-lhe as botas de lamas e esterco, lavou-lhe os pés com morno banho de ervas, enquanto ele degustava etílico aperitivo para temperar o repasto. Então em rompante, ele bateu o fundo do copo fortemente contra a mesinha, fitou-a o fundo dos olhos com fúria e fogo e a tomou nos braços com grosseiro beijo.
Naquela noite foi dele, apesar do êxtase não ousava palavra, ele não gostava, não ousava carinho, ele não a amava. Era a empregada.
Todo dia ela o amava, todo dia ele que a não amava, a tinha. Por anos serviu-lhe à mesa e à cama, era odalisca, era gueixa, era ama e aia, era mulher, amante, era o colo, era o calo, era o gozo, era o escape e ainda era a empregada.
Achava suficiente a ter, não a merecia ou desmerecia, não a respeitava mais por tudo, tão pouco a respeitava menos, aquele cotidiano o bastava. Então, sob um meio-dia, hora onde não se nasce ou morre, feriu-lhe o imo, tão lancinante angústia, que sentiu o gosto do palpitar surdo do peito a travar-lhe a garganta. Atinou à casa num galope resfolegante e cego cruzou o acre de terra na amplitude de um grito. Abriu a porta e encontrou-a ao chão em corpo lasso e rubras lágrimas a verterem os olhos.
Desesperou-se como da outra vez, mas desta não permitiria a morte, berrou agonia em raiva aguda tão forte que convocou todos em quilômetros, que sem saber o porquê vieram em seu apelo. Todos que lhe deviam respeito ou dinheiro o acudiram a afastar o sinistro.
Cuidou-a como o mais caro presente, gastou fortuna e grisou os cabelos em busca duma cura, dedicou cada segundo de cada mês daquela estação a cuidá-la de tudo. Lembrou: os anos de esmero e desvelo, dos olhos a ofertar carinho sem riso em resposta, dos anos dados porque sim, as horas ansiadas por qualquer coisa, a lágrima contida e o sorriso sentido.
Perdeu noites vigiando espasmos a anunciar melhora, perdeu a calma a esperar o alívio, vendeu terras e empenhou o nome, perdeu as forças. Mas num dia de tristeza em que a desesperança escorria em solitária gota, quando o último filete do ocaso a tocou no rosto, inexplicável como a vida, ela abriu os olhos.
Ele a viu como novo parto e chorou como vivesse tudo de uma só vez, mas não sorriu, abraçou-a tão forte que se ouviu nas duas caixas apenas um retumbo.
Amparou-lhe no ombro e em recuperado semblante austero desfilou as ruas da cidadezinha como herói, onde todos o reconheciam com respeitoso sorriso e leve meneio. Desta vez não permitiu a morte. Conduziu-a até a casa e abriu-lhe a porta.
Ela parou ao primeiro passo e olhou minuciosamente toda a casa que agora sentia sua, marejou os olhos à visão de cada cômodo e cada badulaque e trouxe a memória de tantas datas. Com amor em sorriso aberto e alegria em choro procurou pelo homem que lhe ofertou nova vida em presente.
Achou-o já sentado na poltrona de couro, com os pés apoiados na mesinha escura, com as mãos firmes cravadas nos descansos e o semblante duro e ríspido, que era só seu, estampado em plenitude. O ranger pesado dos anos na face anunciou a primeira fala, fitou-a sem sorriso e disse: – Me limpe as botas!
Continuava empregada.
Desde bem antes da morte da esposa ela já o servia, limpava suas botas quando vinha do estábulo, servia bebida e café enquanto ele sentava com os pés apoiados na pequena mesa de madeira escura.
A submissão no olhar admirado lampejava a todos, e apesar do zelo, apreço e adoração era a empregada e ele a tratava assim... Como a empregada.
Era figura importante na cidade, bem relacionado e querido entre os amigos. Gabava-se em tom rude da lida e agruras que enfrentou para ser quem era. Vivia a respirar a admiração que todos o ofertavam. E ela, sem nada ter, ofertar ou esperar, complacentemente o amava.
Esperava-o toda noite com a mesa posta, a toalha no ombro, os ombros encolhidos e o lava-pés ao lado de sua poltrona de couro, seguia a mesma rotina todo dia com o fervor de beata em procissão.
Naquele dia limpou-lhe as botas de lamas e esterco, lavou-lhe os pés com morno banho de ervas, enquanto ele degustava etílico aperitivo para temperar o repasto. Então em rompante, ele bateu o fundo do copo fortemente contra a mesinha, fitou-a o fundo dos olhos com fúria e fogo e a tomou nos braços com grosseiro beijo.
Naquela noite foi dele, apesar do êxtase não ousava palavra, ele não gostava, não ousava carinho, ele não a amava. Era a empregada.
Todo dia ela o amava, todo dia ele que a não amava, a tinha. Por anos serviu-lhe à mesa e à cama, era odalisca, era gueixa, era ama e aia, era mulher, amante, era o colo, era o calo, era o gozo, era o escape e ainda era a empregada.
Achava suficiente a ter, não a merecia ou desmerecia, não a respeitava mais por tudo, tão pouco a respeitava menos, aquele cotidiano o bastava. Então, sob um meio-dia, hora onde não se nasce ou morre, feriu-lhe o imo, tão lancinante angústia, que sentiu o gosto do palpitar surdo do peito a travar-lhe a garganta. Atinou à casa num galope resfolegante e cego cruzou o acre de terra na amplitude de um grito. Abriu a porta e encontrou-a ao chão em corpo lasso e rubras lágrimas a verterem os olhos.
Desesperou-se como da outra vez, mas desta não permitiria a morte, berrou agonia em raiva aguda tão forte que convocou todos em quilômetros, que sem saber o porquê vieram em seu apelo. Todos que lhe deviam respeito ou dinheiro o acudiram a afastar o sinistro.
Cuidou-a como o mais caro presente, gastou fortuna e grisou os cabelos em busca duma cura, dedicou cada segundo de cada mês daquela estação a cuidá-la de tudo. Lembrou: os anos de esmero e desvelo, dos olhos a ofertar carinho sem riso em resposta, dos anos dados porque sim, as horas ansiadas por qualquer coisa, a lágrima contida e o sorriso sentido.
Perdeu noites vigiando espasmos a anunciar melhora, perdeu a calma a esperar o alívio, vendeu terras e empenhou o nome, perdeu as forças. Mas num dia de tristeza em que a desesperança escorria em solitária gota, quando o último filete do ocaso a tocou no rosto, inexplicável como a vida, ela abriu os olhos.
Ele a viu como novo parto e chorou como vivesse tudo de uma só vez, mas não sorriu, abraçou-a tão forte que se ouviu nas duas caixas apenas um retumbo.
Amparou-lhe no ombro e em recuperado semblante austero desfilou as ruas da cidadezinha como herói, onde todos o reconheciam com respeitoso sorriso e leve meneio. Desta vez não permitiu a morte. Conduziu-a até a casa e abriu-lhe a porta.
Ela parou ao primeiro passo e olhou minuciosamente toda a casa que agora sentia sua, marejou os olhos à visão de cada cômodo e cada badulaque e trouxe a memória de tantas datas. Com amor em sorriso aberto e alegria em choro procurou pelo homem que lhe ofertou nova vida em presente.
Achou-o já sentado na poltrona de couro, com os pés apoiados na mesinha escura, com as mãos firmes cravadas nos descansos e o semblante duro e ríspido, que era só seu, estampado em plenitude. O ranger pesado dos anos na face anunciou a primeira fala, fitou-a sem sorriso e disse: – Me limpe as botas!
Continuava empregada.
2 comentários:
Não não
Ela pertencia ao amor.
lembrou-me tempos de infancia na fazenda,onde alguns ,donos de terras pareciam com esse.
Tantas historias.
bom demais td aqui
Volto!
Excelente texto, mestre Zorbba.
Descobri esse teu blog hoje. Acho que vou passar de vez em quando.
Espero que esteja tudo tranquilo por aí.
Abraço.
Delano
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